• Cavalgando pela mudança na Luzitânia

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  • 06/02/2019 10:32

    Rastros do tempo tracejam o revestimento de fibra. Curtido e entrelaçado, é um emaranhado de maleabilidade e maciez. Manuseado e comercializado na Luzitânia, o couro estava equiparado às mãos que o percorriam. Calejadas e trilhadas, escondiam um brando enredo em que, quanto mais se adentrava, mais afável se tornava.

    Se à primeira vista era a seriedade que sobressaía, por outro, era na convivência que a serenidade irradiava. O arquiteto Gilson Ramos dos Santos, de 77 anos, relembra a postura do avô, José de Sá Ramos, idealizador de “A Luzitânia”. Português no papel, daí a referência ao país de origem no nome da loja, se tornou petropolitano por escolha.

    “Quando meu avô morreu, o comércio todo fechou as portas. Se a cidade estivesse precisando de alguma coisa ele farejava aquilo e colocava na loja dele. Ele sempre ficava a procura de novas mercadorias: desde sapatos finos, camurça, tulipa, cromo alemão, óleo para engraxar couro e cera de abelha, até correias para motores”. 

    O paraíso dos sapateiros tinha nome e endereço; oferecia formas, solados e saltos dos mais variados tipos. Lá os profissionais eram tratados como reis, e ai dos netinhos quererem se aproveitar da figura do português para garantir aquele sapato de melhor qualidade para desfilarem por aí. “Ele nos dava o mais simples que tinha. Não dava moleza pra gente não”.

    Referência na cidade quando o assunto envolvia couro, o estabelecimento foi fruto de uma postura visionária. Gilson conta que o avô se mudou para o Brasil ainda jovem. No Rio, trabalhava numa casa também de artefatos de couro e, numa de suas entregas em Petrópolis, identificou a oportunidade de implementar uma loja, aos mesmos moldes, na cidade.

    “Raramente vejo uma loja com tantos itens quanto ele tinha lá. Meu avô tinha um profissional que fazia o arreio e preparava as rédeas, tudo que se usa no cavalo, tanto a carroça, quanto a montaria. Ele também tinha a parte esportiva e fornecia para vários clubes de Petrópolis: bolas, redes. Ele vislumbrava o que tinha para vender e se aventurava”. 

    A Luzitânia jogava em todas as frentes e sempre “batia um bolão”, literalmente. O médico Marco Antônio Moreirão, de 71 anos, relembra as “peladas” com os amigos e as vezes em que recorreu à loja no conserto de bolas. Ao mesmo tempo em que se sentia grato pelos serviços prestados, torcia para não ter que retornar tão cedo.

    “Quando furava a bola, acabava a pelada! Os campinhos eram de areia, de terra, então sempre que a câmara de ar estourava a gente levava na Luzitânia para consertar. Era o único recurso que nós tínhamos e a única loja em Petrópolis em que se consertava bola. Naquela época era algo caro e raramente comprávamos outra”.

    Cavalos selados

    Foto: Reprodução Internet

    Foto: Bruno Avellar

    “Se um cavalo selado passar perto de você, suba porque pode ser que ele passe apenas uma vez”. O ditado popular nunca fez tão sentido para o aposentado Bergem Leôncio Vianna, de 74 anos, quanto naquela véspera de Natal de mais de meio século atrás. O cavalo estava frente a frente com ele e, numa questão de segundos, precisava optar por subir ou deixá-lo ir. 

    “Eu era garoto e sempre comprava material para a sapataria do meu irmão. Uma vez, três dias antes do Natal, a menina do caixa me deu o troco a mais. No caminho, eu parei para conferir e, mesmo sendo um dinheirão para uma criança, voltei lá e devolvi! Minha mãe sempre me ensinou a ser honesto e até hoje sou assim”.

    Tomado pelo impulso de fazer o bem, Bergem se agarrou ao cavalo e, imediatamente, soube que havia tomado a decisão certa. De volta à loja, foi elogiado pelo próprio dono do estabelecimento e, dali pra frente, lhe foi dado o impulso e a confiança que, à época, mal sabia que precisava.

    “Aquilo me marcou. Me lembro que cheguei em casa e minha mãe ficou feliz com o gesto. Depois daquele dia, quando chegava lá e tinha muita gente sendo atendida, eu mesmo me servia. Pesava aquelas tachinhas de pregar, apanhava aquilo tudo e depois só pagava a conta. Foi muito bom ganhar aquela confiança”.

    Cruciais, as idas ao local trilharam novos rumos e perspectivas para Bergem; e, assim como ele, quem teve a jornada mudada no momento em que adentrou a Luzitânia pela primeira vez foi o pai do aposentado Fernando Ferreira, considerado o funcionário mais antigo que a casa já teve.

    “Posso dizer que, quando meu pai, Orlindo Ferreira da Silva, se aposentou, a atendente do IAPC, Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários, o questionou se ele só havia tido um emprego e ele respondeu assim: “dá uma olhada na data de admissão”. Já tinha quase 40 anos de casa”.

    De família portuguesa, não foi difícil para Orlindo criar elos com os patrões. A empatia foi crescendo e, junto dela, um relacionamento mais familiar do que qualquer outro. Fernando, de 79 anos, estima que o pai tenha começado a trabalhar na loja aos 15 anos e saído de lá somente já na faixa dos 60. Certamente, um colecionador de boas histórias.

    “Juntamente do senhor José de Sá Ramos, estava a dona Carlota. Havia também o senhor Isaías e a dona Jacinta, que eram filhos desse casal. Meu pai contava uma história de que, certa vez, foi reclamar que o salário estava pouco. A dona Carlota teria dito que dinheiro não trazia felicidade e ele teria rebatia dizendo: é, dona Carlota, mas acalma os nervos”.

    Tal qual o processo de preservação do couro, os funcionários e frequentadores da Luzitânia cavalgavam pela mudança, atravessavam estágios de valorização e transformação. 

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